martes, 11 de enero de 2022

ASAS DEPENADAS

 

ASAS DEPENADAS

Quando menino, em meio a minha liberdade de passos, corria pela fazenda e num destes dias inesperados, vi asas depenadas voando para o telhado.

Era algo surreal, como pode ser que asas pudessem ser depenadas a tal ponto de não ter corpo e nem resguardar a forma, para assim poder voar e safar-se do destino imposto.

Sempre o destino é algo infligido. Sempre! ...

 

Penas de uma ave que sabia voar; poderia ser; foi talvez a confiança absurda da ave ao humano que a deixou sem asas; neste momento somente percebia pensamentos despencando de minha torpe razão... meus sentimentos estavam tão confusos que queria descobrir o tal feitor para poder retribuir-lhe no mesmo tom...

Estava brotando raiva e ao mesmo tempo tingia o meu olhar antes enternecido pela ausência do que poderia ser.... àquelas asas depenadas...

 

Queria tecer sonhos para encobrir aquela realidade cruel que surgia diante de meus passos...

De repente o sino tocou, era a minha avó, chamando a todos para o almoço... Nossa! Como a hora corre! ...

Queria dizer a todos o ocorrido, mas quando passando pela cozinha, vi algo diferente na enorme panela de barro, pensei que poderia ser algo novo, de sabor nunca antes provado.... Um digno mistério a ser desvelado!

É certo que a minha alma estava humedecida com as minhas lágrimas, por saber que uma ave não mais iria voar e ao mesmo tempo, inundava uma tremenda curiosidade para saber do tal novo sabor escondido nas entranhas daquela enorme panela de barro...

 

De pronto, sentado à mesa, com todos; eu ansioso por provar do tal mistério... num momento marcante que surgira, foi-me a realidade de vez... o meu voo de menino, de mil sentimentos confusos, deparara-se com uma evidência incontestável...

Se não fora porque a minha barriga, sabia roncar e clamara-me por alimentar-me de coisas novas, ampliando o meu horizonte gastronômico; da mesa correria; sem parar em busca da minha sensibilidade ofendida...

 

La estava o corpo deliciosamente empapado do caldo dos deuses e com intensão de ganhar-me pelo seu sabor eminente...

As asas se foram voando da minha mente, e o corpo ali presente, tocou-me com o inesperado; uma ave grande, sem asa, asada, com um sabor único que magicamente combinara com legumes, verduras e tonalidades de frutas.

Enfim, degustei a morte, mas em mim estava a esperança de uma certeza que ainda seria reforçada um dia:

- Sim! As asas podem voar sem o corpo; e aquele almoço estava simplesmente divino! Ave!

(As Histórias de um Menino - Lúcio Alex. Belmonte)

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